Certo rei e rainha tinham três filhas. A formosura das duas mais velhas era fora do comum, mas a beleza da mais moça era tão maravilhosa que não existiam palavras para expressá-la, talvez maior que das próprias Deusas do Olimpo. A fama de tal beleza foi tão grande que estrangeiros de países vizinhos iam, em multidões, admirá-la, e assombrados, rendiam à jovem homenagens que só deveriam ser feitas a Afrodite. Assim, Afrodite viu os seus altares desertos, enquanto os homens voltavam sua devoção a jovem virgem que se chamava Psiquê.
Afrodite recebeu como afronta tais atos e exclamou:
- Terei, então, que ser eclipsada em minhas honras por uma jovem mortal? Ela não poderá usurpar minhas honras tranqüilamente, irei dar a ela um motivo para se arrepender dessa beleza injustificada.
Afrodite chamou seu filho Cupido, lindo e bastante ardiloso, e ordena a ele a castigar Psiquê:
- Meu filho, aquela audaciosa beleza afronta aos Deuses, garanta à tua mãe uma vingança tão doce quanto foram amargas as injúrias recebidas. Infunde no peito daquela donzela uma paixão por algum ser baixo, indigno, que ela possa colher uma mortificação tão grande quanto o júbilo e o triunfo de agora.
Cupido preparou-se para obedecer às ordens maternas e dirigiu-se ao quarto de Psiquê que estava dormindo. Ao ver a jovem, Cupido ficou perplexo e acabou encantado com tamanha a beleza da princesa, porém nesse instante, Psiquê acordou e abriu os olhos diante de Cupido, que, perturbado, feriu-se com sua própria flecha e voltou ao Olimpo encantado pela sua própria magia.
Psiquê, era contemplada pela beleza porém nenhum rei, príncipe ou plebeu, apresentava-se para pedi-la em casamento. Suas duas irmãs mais velhas, muito menos belas, já haviam casado com dois príncipes herdeiros, enquanto Psiquê, em seus aposentos, deplorava a solidão, irritada com a beleza que, embora trazendo uma prodigalidade de louvores, não conseguira despertar amor.
Seus pais, receosos de que, inadvertidamente, tivessem incorrido na ira dos deuses, consultaram o oráculo de Apolo, que respondeu:
- A virgem não se destina a ser esposa de um amante mortal. Seu futuro marido a espera no alto da montanha. É um monstro a quem nem os deuses nem os homens podem resistir.
Essa terrível predição do oráculo encheu a todos de desânimo, e os pais da jovem entregaram-se ao desespero. Psiquê, porém, disse:
- Por que lamentais, meus queridos pais? Deveriam ter sofrido quando todos faziam honras indevidas e me chamavam de Afrodite. Percebo agora que sou vítima daquele nome. Resigno-me. Levai-me àquele rochedo a que me destinou meu desventurado destino.
E, assim, tendo sido preparadas todas as coisas, a donzela real tomou seu lugar no cortejo, que mais parecia um funeral que um casamento e, com seus pais, entre as lamentações do povo, subiu a montanha, no alto da qual deixaram-na só, voltando para casa, com os corações afogados em tristeza.
Enquanto Psiquê estava de pé no alto da montanha, tremendo de medo e com os olhos rasos de lágrimas, o gentil Zéfiro, o vento do oeste, a levantou acima da terra e a conduziu suavemente a um vale florido. Pouco a pouco, a jovem acalmou-se e estendeu-se na relva, para dormir. Ao despertar, refeita pelo sono, olhou em torno e viu, bem perto, um lindo bosque de árvores altas e majestosas. Entrou no bosque e, no meio dele, encontrou uma fonte, de águas puras e cristalinas, e, mais adiante, um magnífico palácio, cuja fachada dava a impressão de que não se tratava de obras de mortais, mas da venturosa morada de algum deus. Tomada de espanto e admiração, a moça aproximou-se do palácio e aventurou-se a entrar. Cada objeto que viu a encheu de assombro. Colunas de ouro sustentavam o teto e as paredes eram ornadas de baixos-relevos e pinturas de animais selvagens e cenas rurais, representados de modo a deleitar os olhos do espectador. Continuando a avançar, Psiquê percebeu que, além dos aposentos majestosos, havia outros tesouros os mais belos produtos da natureza e da arte.
Enquanto admirava, uma voz se fez ouvir, embora a jovem não visse quem quer que fosse, dizendo estas palavras:
- Soberana dama, tudo que vês é teu. Nós, cujas vozes ouves, somos teus servos e obedeceremos às tuas ordens com a maior atenção e diligência. Retira-te, para teu quarto e repousa em teu leito e, quando tiveres descansada, poderás banhar-te. A ceia te espera no aposento adjacente, quando ali sentares.
Psiquê atendeu às recomendações dos servos invisíveis, e depois de repousar e banhar-se, sentou no aposento, onde imediatamente surgiu uma mesa, sem qualquer servidor visível, com pratos e vinhos mais deliciosos. Também seus ouvidos foram deleitados com música tocada por executantes invisíveis, um dos quais cantava, outro tocava alaúde, enquanto os demais contemplavam a maravilhosa harmonia de um coro perfeito.
Psiquê ainda não vira o marido que lhe estava destinado. Ele vinha apenas nas horas de escuridão e partia antes do amanhecer, mas suas expansões eram repletas de amor e inspirou nela uma paixão semelhante. Muitas vezes ela implorava ao amante que ficasse e a deixasse olhá-lo, mas ele não consentia. Ao contrário, recomendou-lhe que não fizesse qualquer tentativa de vê-lo, pois ele tinha bons motivos para se esconder.
- Por que queres me ver? - perguntava. - Podes duvidar de meu amor? Tens algum desejo que não foi satisfeito? Se me visses, talvez fosses temer-me, talvez adorar-me, mas a única coisa que peço é que me ames. Prefiro que me ames como igual a que me adores como a um deus.
Estes argumentos de certo modo aquietaram Psiquê durante algum tempo, e, enquanto tudo foi novidade, ela se sentiu feliz. Finalmente porém, a lembrança de seus pais, que ignoravam seu destino, e das irmãs, impedidas de compartilhar com ela as delícias de sua situação, dominaram-lhe o espírito, e ela começou a considerar o palácio apenas como uma esplêndida prisão. Quando o marido apareceu certa noite, ela lhe contou seus sofrimentos e acabou, embora a custo, obtendo seu consentimento para que suas irmãs pudessem ir vê-la.
Assim, chamando Zéfiro, ela lhe transmitiu as ordens do marido e ele, obedecendo prontamente, trouxe as irmãs de Psiquê, para o vale onde ficava o seu palácio. Elas a abraçaram e a jovem retribuiu-lhes as carícias.
- Vinde, disse Psiquê.
- Entrai em minha casa e desfrutem do que vossa irmã tem para vos oferecer.
Então, tomando-as pelas mãos, levou-as a seu palácio de ouro e entregou-as aos cuidados dos criados invisíveis, a fim de que se banhassem, fossem servidas à mesa e admirassem os numerosos tesouros. À vista daqueles dons celestiais fizeram com que a inveja penetrasse no coração das duas, vendo que sua irmã mais moça possuía riquezas e esplendores muito superiores aos seus.
Fizeram a Psiquê inúmeras perguntas, entre outras, que espécie de pessoa era seu marido. Psiquê respondeu que era um belo jovem, que geralmente passava o dia caçando nas montanhas. As irmãs, não satisfeitas com essa resposta, fizeram-na confessar que nunca o vira. Trataram, então, de encher o coração da jovem de sombrias desconfianças.
- Lembra-te - disseram - que o oráculo anunciou que tu te casarias com um monstro horrível e tremendo. Os habitantes deste vale dizem que teu marido é uma terrível e monstruosa serpente, que te nutre, por enquanto, com alimentos deliciosos a fim de devorar-te depois. Ouve nosso conselho. Mune-te de uma vela e de uma faca afiada; esconde-as de maneira que teu marido não possa achá-las, e, quando ele estiver dormindo profundamente, sai do leito, traze a vela e vê, com teus próprios olhos, se o que dizem é verdade ou não. Se é, não hesites em cortar a cabeça do monstro e recuperares tua liberdade.
Psiquê resistiu a esses conselhos tanto quanto pôde, mas eles não deixaram de impressioná-la e, depois que suas irmãs se retiraram, o efeito de suas palavras e a própria curiosidade da jovem tornaram-se bastante fortes para que ela pudesse resistir. Assim, preparou a vela e uma faca afiada e escondeu-as do marido. Quando ele adormeceu, Psiquê levantou-se sem fazer ruído e, trazendo a vela, avistou não um monstro horripilante, mas o mais belo e encantador dos deuses, com madeixas louras caindo sobre o pescoço cor-de-neve e as faces róseas, um par de asas nos ombros, mais brancas que a neve, de penas brilhantes como as flores da primavera. Ao baixar a vela para ver o rosto do marido mais de perto, uma gota de óleo ardente caiu no peito do deus, que, assustado, abriu os olhos e encarou Psiquê. Depois, sem dizer uma palavra, abriu as brancas asas e voou através da janela. Psiquê, numa vã tentativa de seguí-lo, caiu da janela ao solo. Cupido, vendo-a estendida no chão, parou o vôo por um instante e disse:
- Tola Psiquê, é assim que retribuís meu amor? Depois de haver desobedecido às ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar-me a cabeça?
- Vai. Volta para junto de tuas irmãs, cujos conselhos pareces preferir aos meus. Não lhe imponho outro castigo, além de deixar-te para sempre. O amor não pode conviver com a desconfiança.
Assim dizendo, ele continuou seu vôo, deixando a pobre Psiquê estendida no chão e lamentando-se tristemente.
Quando se recompôs um pouco, olhou em torno, mas o palácio e os jardins haviam desaparecido, e ela se viu num campo aberto a pequena distância da cidade onde moravam suas irmãs. Procurou-as e contou-lhes toda a história do seu infortúnio, como que as desprezíveis criaturas, fingindo pesar, na verdade se regozijavam.
- Agora, talvez ele escolha uma de nós - disseram.
Levadas por essa idéia, e sem dizer uma palavra sobre suas intenções, cada uma delas levantou-se cedo na manhã seguinte, dirigiu-se ao alto da montanha e convocou Zéfiro, para recebê-la e levá-la a seu senhor. Depois, atiraram-se no ar e, não sendo sustentadas por Zéfiro, cairam no precipício.
Enquanto isso, Psiquê caminhava noite e dia, sem repouso nem alimentação, à procura do marido. Tendo avistado uma imponente montanha, e cujo cume havia um magnífico templo, disse consigo mesma, suspirando:
- Talvez meu amor, meu senhor, habite ali.
E, assim dizendo, dirigiu-se ao templo.
Mal entrara, viu montões de trigo, em espigas e em feixes. Espalhados em torno, haviam foices e ancinhos e todos os demais instrumentos da ceifa, em desordem, como que atirados pelas mãos de ceifadores cansados, nas horas escaldantes do dia.
A piedosa Psiquê pôs fim àquela confusão indizível, separando e colocando cada coisa em seu lugar devido, convencida de que não deveria negligenciar o culto de nenhum deus, mas, ao contrário, procurar, com sua diligência, cultuá-los todos. A deusa Deméter, de quem era aquele templo, vendo a jovem tão piedosamente ocupada, assim lhe falou:
- Ó Psiquê, embora eu não possa proteger-te contra a má vontade de Afrodite, posso ensinar-te o melhor meio de evitar desagradá-la. Vai e voluntariamente rende-te à tua deusa e soberana e trata de conseguir-lhe o perdão pela modéstia e submissão, e talvez ela te restitua o marido que perdeste.
Psiquê obedeceu à ordem de Deméter e dirigiu-se ao templo de Afrodite, tentando fortalecer o espírito e repetindo, em voz baixa, o que iria dizer e como tentaria apaziguar a divindade irritada, compreendendo que o caso era difícil e talvez fatal.
Afrodite recebeu-a com a ira estampada na fisionomia.
- Tu, a mais ingrata e infiel das servas, lembraste, afinal que tens, realmente, uma senhora? - exclamou. - Ou talvez vieste para ver teu marido enfermo, ainda chorando em conseqüência da dor que você o causou. És tão pouco favorecida e tão desagradável, que o único meio pelo qual podes merecer teu amante é uma prova de fidelidade e habilidade.
Ordenou, então, a Psiquê que fosse ao celeiro de seu templo, onde havia grande quantidade de trigo, aveia, ervilhas, feijões e lentilhas preparados para a alimentação dos pombos sagrados, e disse:
- Separa todos esses cereais, colocando cada um de acordo com sua qualidade, e trata de fazer isso antes do anoitecer.
Depois Afrodite partiu, deixando a jovem.
Psiquê porém, caiu consternada, diante da imensidade do trabalho.
Enquanto estava ali, desesperada, Cupido incitou a formiguinha, nativa dos campos, a ter pena dela. A chefe do formigueiro e toda a multidão de suas súditas de seis pernas aproximaram-se do montão de cereais e com a maior paciência, tomando grão por grão, separaram o montão, formando um monte de cada tipo e, quando tudo terminou, desapareceram num momento.
Ao aproximar-se o crepúsculo, Afrodite voltou do banquete dos deuses, cheirando a perfumes e coroada de rosas. Vendo a tarefa executada, exclamou:
- Isto não é obra tua, mas daquele que conquistaste.
Assim dizendo, deu à jovem um pedaço de pão preto para a ceia e partiu.
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